Escondida nas profundezas de uma cadeia montanhosa raramente atravessada, onde os picos nevados arranhavam um céu perpetuamente nublado, existia a aldeia de Umbrarum. Não constava em mapa algum, e os poucos forasteiros que alguma vez tropeçaram nela, geralmente caçadores perdidos ou eremitas excêntricos, raramente regressavam para contar a história, ou se o faziam, as suas narrativas eram tão bizarras que eram descartadas como delírios febris.
Os habitantes de Umbrarum eram um povo antigo, com tradições que remontavam a tempos imemoriais, muito antes das religiões e impérios conhecidos terem varrido o mundo. A sua existência era ditada pelos ciclos da natureza, mas não da natureza como a conhecemos. Eles veneravam as sombras, acreditando que eram portais para um outro mundo, um reino de entidades ancestrais e poderosas que influenciavam a sorte, a fertilidade e a própria vida e morte. O seu ritual mais sagrado, e mais temido, era o Festim da Lua de Sangue, realizado a cada geração, quando o alinhamento cósmico pintava a lua de um vermelho carmesim sinistro.
Ninguém de fora conhecia os detalhes exatos do Festim, mas as lendas sussurradas nas aldeias mais próximas, a muitos vales de distância, falavam de danças frenéticas que duravam dias, de cânticos guturais que pareciam invocar algo das entranhas da terra, e de um sacrifício. Um sacrifício para apaziguar as Sombras, para garantir a continuidade da aldeia e para renovar o pacto que os seus antepassados tinham feito eras atrás.
Lira era uma jovem de Umbrarum, curiosa e um pouco rebelde, que crescera a ouvir as histórias e a observar os preparativos para os rituais menores. Mas o Festim da Lua de Sangue era diferente. Seria o primeiro da sua geração. Os anciãos da aldeia, com os seus rostos sulcados como a casca de árvores antigas e os seus olhos que pareciam conter a escuridão das cavernas mais profundas, começaram os preparativos meses antes. A aldeia inteira foi purificada com fumo de ervas raras, as casas foram pintadas com símbolos complexos usando pigmentos feitos de sangue animal e terra do cemitério dos antepassados.
À medida que a data se aproximava, uma tensão palpável instalou-se em Umbrarum. As crianças eram mantidas dentro de casa após o anoitecer, e os adultos falavam em sussurros, os seus rostos tensos. Lira sentia uma mistura de medo e de uma estranha excitação. Ela fora escolhida, juntamente com outros jovens da sua idade, para participar na Dança das Sombras, o prelúdio do clímax do Festim.
Na noite da Lua de Sangue, a aldeia reuniu-se no círculo de pedras ancestrais, no ponto mais alto da montanha, um lugar onde se dizia que o véu entre os mundos era mais fino. A lua, enorme e de um vermelho aterrador, pairava no céu, banhando a paisagem numa luz fantasmagórica. Fogueiras crepitavam, lançando sombras dançantes que pareciam ganhar vida própria.
Os tambores começaram a soar, um ritmo hipnótico e primordial que parecia ecoar os batimentos cardíacos da própria montanha. Os anciãos entoavam cânticos numa língua esquecida, as suas vozes roucas e carregadas de uma solenidade antiga. Lira e os outros jovens, os seus corpos pintados com os mesmos símbolos das casas, começaram a dançar. Não era uma dança de celebração, mas de transe, de invocação. Os seus movimentos eram erráticos, contorcidos, como se estivessem a ser manipulados por fios invisíveis.
À medida que a dança se intensificava, as sombras ao redor do círculo de pedras pareciam aprofundar-se, a contorcer-se de formas não naturais. Lira sentiu um frio gelar-lhe os ossos, apesar do calor das fogueiras e do esforço da dança. Viu, ou pensou ter visto, formas escuras a moverem-se nas periferias da sua visão, figuras altas e esguias com olhos que brilhavam com uma luz fria e vermelha, refletindo a lua de sangue.
O ar tornou-se pesado, carregado de uma energia palpável. Os cânticos dos anciãos atingiram um crescendo. E então, o sacrifício foi revelado. Não era um animal, como Lira sempre supusera. Era um dos anciãos. O mais velho de todos, o guardião da sabedoria da aldeia. Ele caminhou para o centro do círculo, o seu rosto sereno, quase exultante. Deitou-se sobre uma laje de pedra lisa, os braços abertos.
Dois outros anciãos, vestidos com mantos negros e máscaras que representavam as faces das Sombras, aproximaram-se, empunhando facas de obsidiana que brilhavam à luz da lua. Lira quis gritar, desviar o olhar, mas estava paralisada, presa no feitiço do ritual.
O que se seguiu foi brutal e primitivo. O sangue do ancião fluiu sobre a pedra, escuro sob a luz vermelha da lua. Mas não houve gritos de dor, apenas um suspiro profundo, como se uma grande tensão tivesse sido libertada. E enquanto o sangue escorria, as sombras ao redor do círculo pareceram avançar, a beber a essência vital que lhes era oferecida.
Lira sentiu uma presença avassaladora, uma inteligência fria e antiga que a observava, que observava a todos. Não era malévolo no sentido humano, mas era vasto, indiferente, e exigia o seu tributo. As figuras sombrias tornaram-se mais distintas, os seus contornos a solidificarem-se por momentos antes de se dissolverem novamente na escuridão. Eram os Senhores das Sombras, as entidades com quem a aldeia tinha o seu pacto.
Quando o ritual terminou, e a primeira luz do amanhecer começou a tingir o céu de cinzento, as sombras recuaram. O corpo do ancião sacrificado fora removido, e a laje de pedra limpa, embora uma mancha escura permanecesse, como uma cicatriz. Os aldeões estavam exaustos, mas havia uma estranha calma nos seus rostos. O pacto fora renovado. Umbrarum sobreviveria por mais uma geração.
Lira ficou profundamente marcada pela experiência. A beleza aterradora do ritual, a palpable presença das Sombras, a aceitação serena do sacrifício – tudo aquilo abalara as suas convicções. Ela compreendeu que o mundo era muito mais antigo e mais estranho do que alguma vez imaginara, e que a sobrevivência da sua aldeia dependia de um equilíbrio precário, mantido à custa de tradições que o mundo exterior consideraria bárbaras.
Nos anos que se seguiram, Lira tornou-se uma guardiã das tradições, tal como o ancião que se sacrificara. Aprendeu os cânticos, os símbolos, as histórias secretas. Compreendeu que o Festim da Lua de Sangue não era um ato de crueldade, mas de comunhão, uma forma de reconhecer as forças primordiais que governavam o seu pequeno mundo isolado. As Sombras não eram deuses a serem adorados, nem demónios a serem temidos. Eram parte da existência, tal como a luz, e exigiam respeito e reconhecimento.
E assim, a aldeia de Umbrarum continuou a sua existência secreta, dançando com as sombras nas noites de lua de sangue, oferecendo o seu tributo para manter o equilíbrio. E Lira, agora uma anciã, preparava a nova geração para o próximo Festim, sabendo que algumas tradições, por mais sombrias e inexplicáveis que pareçam, são a âncora que impede uma comunidade de se perder na escuridão ainda maior do esquecimento e da irrelevância, num mundo que há muito se esquecera de como ouvir os sussurros das entidades ancestrais que ainda vagueiam pelas franjas da realidade.